Foi num lugar bastante apropriado, a Casa do Comum, no Bairro Alto de Lisboa, que assistimos, na sexta-feira, 28 de junho de 2024, à projeção do filme My Nature, da dupla italiana, Massimiliano Ferraina e Gianluca Loffredo. O filme acompanha a jornada íntima de Simone Di Giacomantonio, um homem trans em busca de liberdade. O documentário mergulha na especificidade dos seus desafios sociais e emocionais e aproxima-nos da personagem, permitindo ao mesmo tempo repensar eventuais preconceitos que subsistam e nos façam projetar na tela os nossos traumas e nossa busca por uma cura. Em diferentes graus, intensidades e formas, o sofrimento é algo que nos é comum.
A cura que Simone procura vem de fora para dentro. Por isso, ele resolve sair da cidade italiana de Caserta para viver nas montanhas do interior da Úmbria, onde uma natureza bela e vigorosa o acolhe e nutre de equilíbrio, esperança e energia. A crença neste trajeto de fora para dentro lança também ao filme o desafio de dialogar com a natureza. Natureza exterior conectada à natureza interior. Assim, belas imagens aéreas, deliciosas captações de som ambiente e banda sonora envolvem-nos na paisagem rural e florestal que entrecorta as cenas e as etapas vividas pela personagem.
Porém, não se trata de um caminho apenas de beleza e desfrute. Muito pelo contrário. Simone parece ter consciência de que o filme também se junta ao seu processo de cura e de exorcismo dos fantasmas que ainda assombram seu caminho. E, como protagonista no filme e, mais do que nunca, na própria vida, ele aceita o convite dos realizadores para gravar um diário com uma câmera, com a qual passa a partilhar o que sente e vivencia. Estes depoimentos extremamente pessoais são incluídos no documentário apenas com uma parte da imagem visível, o que nos permite ver um olho e um pouco da boca, ou metade do rosto, ou um corpo cortado ao meio. Assim, cria-se a sensação de que este homem, aos poucos, está se construindo, para nós e para ele. Juntando pedaços, ângulos, e desvelando o que ainda não se conhece de sua identidade. A esses trechos agregam-se mensagens de áudio e outras conversas, formando uma narração totalmente pessoal na sua própria voz.
Encontros de boas conversas, aliás, permitem-nos conhecer as pessoas com as quais Simone passa a conviver nessa nova vida no campo. Sorrisos mais leves, mais sinceros, brilhos nos olhos, cuidado com o corpo e com o outro, e assuntos profundos, por vezes difíceis. Algo que nos faz crer que este caminho, mesmo sem planos – como afirmado por ele – está a frutificar. A liberdade diante do abandono de expectativas parece ali fundamental para diminuir o sofrimento e encontrar a felicidade no agora e no contato com a natureza exterior.
Consciente, dentro da própria jornada do filme, que ainda falta algo em seu processo, Simone decide voltar à Caserta para reencontrar suas origens, seus amigos, e encarar e ressignificar o passado de sofrimento. Durante a conversa, após a exibição do filme, o diretor Massimiliano Ferraina destacou que a transição de gênero para os homens trans é costumeiramente um processo causador de grande e grave isolamento social. E falou também que, apesar da luta do movimento LGBTQIA+, a Itália é um país que ainda exige a realização de cirurgia de transição de gênero para que se possa alterar o nome nos documentos oficiais. E assim, o filme também não se exime de localizar estas cicatrizes da cirurgia, e os traumas do isolamento da personagem.
O percurso, até onde acompanhado pelo documentário, mostra que Simone está disposto a encarar o sofrimento por outro ângulo, conectando-se mais com o “agora” e percebendo que a natureza nos dá lições a partir da sua constante mudança. Com essa nova percepção da vida, ele pretende seguir cuidando de si para também ajudar outras pessoas. E é aí que a abertura para expor sua vida através de um filme parece fazer todo sentido. Assim, em sintonia com uma natureza mesmo generosa, My Nature, para além das possibilidades de colaborar com a cura e a afirmação de Simone, chama a atenção para os desafios das pessoas trans, além de nos convidar a olhar para o nosso sofrimento e as nossas escolhas diante do mundo e da natureza que nos cerca.
Felipe Peres Calheiros